domingo, 12 de setembro de 2010

.fora.

sim, sim, o que senão olhar para fora de mim pode me fazer escapar da imagem rígida que regularmente componho para mim mesma, o que senão esse pedaço inesperado de laranja-ferrugem que se dirige ao teto como um funil pode romper a regularidade dessa sala, dessa aula, dessa hora; o que senão um ventilador silenciado e uma cortina branca opaca repleta de manchas amareladas inflando com o vento, o que senão esses outros mais velhos e mais novos do que eu, desconhecidos e quase indiferentes, pode fazer com que algo em mim se transforme e se mova - sim, porque tendo a manter minha nuca rigidamente recolhida e meu olhar baixo, fechado e estático, sim, porque tantas vezes ignoro o peso do meu corpo e me recuso a aderir ao chão - enfim, o que há em mim por descobrir além dos gestos infinitamente repetidos de auto-complacência,eu dou graças a deus pela banalidade e pela aridez e pela estranheza e pela opacidade das coisas, que rompem e desmontam minhas covardes transparências - penso em Diane Arbus que insiste que aquilo que ela fotografa importa mais, muito mais do que as suas incômodas fotografias, penso em Goethe que diz que sim, a tarefa mais elevada a que um artista pode aspirar é a imitação da vida, imitação da natureza - o problema, alerta ele, o problema é que nada sabemos da natureza, nada enxergamos dela, não a vemos, não sabemos ver - ela nada tem a ver com aquilo que se oferece placidamente aos nossos sentidos, nada tem a ver com a regularidade das coisas que a arrogância do nosso olhar organiza num todo estático - há que se aprender, há sim que se aprender a ver - e sim, sim, sim, quero me dirigir àquilo que me escapa, quero estar aonde nunca estive, quero amaciar e endurecer

uma porta bate, as pessoas conversam mas só as vejo através de seu reflexo pouco nítido e invertido no vidro não muito limpo da janela; há grades de metal torcido que fazem com que minha imagem tanto quanto as deles apareçam circunscritas a um espaço quadriculado, as paredes e a tela de cortiça branca rabiscada compõem um fundo branco e um retângulo branco no vidro - sim, o vidro, sempre - riscado apenas de leve pela imagem entrecruzada de linhas curvas grossas e finas que apenas minha razão muito bem educada e sensata me faz saber que são galhos, galhos tortos de árvore e folhas incapazes de me arranhar e ferir, inofensivos por detrás da janela; o teto e as linhas de quadrados de cimento tornados diagonais quando transpostos pelo vidro fornecem à imagem da tela uma profundidade e perspectiva que eu, com meus contornos indistintos e minhas proporções ínfimas não seria capaz de dar - sim, nenhum de nós, nenhum de nós todos seria capaz - isso mesmo - de dar, eu não sou - ao menos ainda - capaz de - dar

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