domingo, 12 de setembro de 2010

jonas 1




E eu dizia: Fui expulso

de diante dos teus olhos.

Como poderei contemplar novamente

o teu santo Templo?

As águas me envolveram até o pescoço,

o abismo cercou-me,

e a água enrolou-se em volta da minha cabeça.

Jonas 2:5.







A performance Jonas 1 foi realizada por Luísa Nóbrega no contexto do projeto Expedição Francisco, com o apoio do Conexão Artes Visuais - Funarte. Do dia 12 até o dia 23 de abril de 2008, os cinco integrantes do projeto percorreram o rio São Francisco de Januária (MG) até a foz do rio, em Piaçabuçu (AL), realizando propostas artísticas que propunham, cada uma, uma forma de relação específica com o rio. Deficiente auditiva, a performer se propôs, através do projeto Jonas 1, a realizar a viagem inteiramente de olhos vendados, colocando a venda no momento de entrar no barco e retirou-a somente no instante em que o rio encontra o mar. Foram, ao todo, onze dias de olhos vendados, nos quais foi o tempo todo orientada e auxiliada pelos demais membros do grupo e, mais diretamente, pelo artista plástico Deyson Gilbert.

Está escuro está escuro e há o calor, há essa claridade que para mim é apenas sol intenso cortante sobre a pele, apenas luminosidade uniformemente amarela que se torna vermelha quando por alguns instantes retiro o pedaço de pano molhado de suor que recobre meus olhos fechados – há mãos que me levam para um lugar ou para outro, enquanto eu tontamente esbarro em pontas e superfícies que parecem ser cantos de mesa, cantos de cadeiras, cantos. sempre que alguém me leva pela mão eu sinto uma mistura de conforto e incômoda gratidão, entregue que estou à minha debilidade e impotência. aos poucos aprendo a discernir um degrau de outro degrau segundos antes de que alguém me advirta prudentemente – sim, subir escadas é mais fácil do que andar em linha reta. não há imagens, há luz apenas. na pequena cidade em que desembarcamos encontramos um homem que parou para falar conosco, um homem que disse que queria ter dinheiro para ir a são paulo operar os olhos – sim, ele não enxergava, ele também – “eu não gosto de claridade”, disse. eu também não, eu quis dizer, eu também não. alivio à noite. adormeço com facilidade, eu que em são paulo padeço de insônia. repetidas vezes adormeço e desperto com o incômodo de acordar e não abrir os olhos, acordar e permanecer num limbo qualquer, sem o alívio tranqüilizador de reconhecer algum espaço familiar que me rodeie. meus movimentos completamente desorientados fazem com que eu me resigne a permanecer imóvel; mesmo de olhos abertos não tenho nenhum senso de direção. o tempo todo ouço sons crus que possuem a brutalidade de ser desprovidos de significado, ouço conversas em que reconheço as vozes mas não compreendo o que dizem - parece-me que nada mais são do que cantilenas indistintas, murmúrios. não sei se vou ser capaz de ler o que escrevo agora, escrever nesse momento não passa de uma estratégia para fazer com que passe mais depressa o tempo ralentado pela ausência do fluxo constante e sempre renovado das imagens, escrevo numa tentativa desajeitada e precária de dissipar meu alheamento – não propriamente de dissipá-lo, mas de fazer algo a partir dele, inútil que seja. sem conseguir escrever em linha reta eu escrevo tontamente - nem se pode dizer propriamente que escreva, que converta em palavras a experiência vivida: o que eu vivo é estúpido e inocente demais para ser chamado propriamente de experiência, embora por vezes eu reconheça algo em mim que talvez possa ter algo a ver com esse rio, esse vento, esse sol agressivo e direto que eu sinto a tentação de associar, numa comparação esdrúxula, a um flagelo. percorre o meu corpo o veneno das inúmeras picadas de mosquito que tenho sob a pele, minhas pernas estão repletas de incômodas saliências. alguém assobia, o motor faz um barulho intenso e débil como o ruído do estômago de um doente. de quando em quando o ruído aumenta e logo pára, denunciando sua monstruosa impotência e seu esforço descabido. alguém fala de uma hélice que ficou atolada na lama. estamos à deriva, fico sabendo com atraso. nenhuma eficiência é permitida, nenhuma velocidade, agora. alguém assobia, com uma ansiedade não inteiramente desprovida de resignação. faz calor aqui. eu, mais do que qualquer coisa, queria uma sombra.



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